O que é Educação em Artes Liberais e por que obtê-la?

No sistema educacional medieval, uma educação completa em Artes Liberais era considerada preparação para as áreas de estudo mais elevadas.
O que é Educação em Artes Liberais e por que obtê-la?
Photo by Luke Tanis / Unsplash
Então, não deixemos o significado de educação ser ambíguo ou mal definido. Atualmente, quando falamos em termos elogiosos ou críticos acerca da formação de cada pessoa, chamamos um homem de educado e outro de não educado, embora o homem não educado possa, às vezes, estar muito bem preparado para a função de comerciante de varejo, ou de capitão de navio, e semelhantes. Pois não estamos falando de educação nesse sentido mais restrito, mas daquela outra educação em virtude, desde a juventude, que faz o homem buscar com afinco a perfeição ideal da cidadania, ensinando-lhe como governar corretamente e como obedecer. Esta é a única educação que, em nossa perspectiva, merece este nome; aquele outro tipo de treinamento, que visa a aquisição de riqueza, força física ou mera astúcia desprovida de inteligência e justiça, é mesquinho e iliberal, não merecendo ser chamado de educação de forma alguma. (Platão)

Existem sete artes liberais, as quais se dividem entre as artes da linguagem do Trivium (Gramática, Lógica e Retórica) e as artes matemáticas do Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia). No sistema educacional medieval, uma educação completa em Artes Liberais era considerada preparação para as áreas de estudo mais elevadas, a saber, Filosofia e Teologia. Essa ideia de que é necessário conhecimento completo antes de se estudar as coisas mais elevadas é, na verdade, muito mais antiga que a Idade Média. Diz-se que, acima da porta da escola de Platão, em Atenas, estava escrito “Que entrem aqui somente os geométricos”.¹ Ao longo dos períodos clássico e medieval, as artes da linguagem e as matemáticas eram ensinadas em conjunto, sendo igualmente valorizadas como preparação indispensável para os questionamentos relativos à verdade, à justiça, à natureza da realidade e à natureza de Deus (ou dos deuses). Sem uma educação em artes liberais, simplesmente faltariam as ferramentas necessárias para se almejar essas questões.

Uma breve palavra sobre o Trivium:

O propósito do trivium é transformar os estudantes em mestres da linguagem. O objetivo da Gramática é ensinar os alunos a encaixar palavras em frases, de modo a transmitir claramente ideias de uma pessoa para outra. O objetivo da Lógica é mostrar como combinar diversas proposições (afirmações) em conjuntos para derivar novas conclusões ou demonstrar a veracidade de uma assertiva (reivindicação). O objetivo da Retórica é ensinar a arte da persuasão por meio da palavra escrita e falada.2

Uma breve palavra sobre o Quadrivium:

O quadrivium abrange o que os modernos tipicamente chamam de matemática e ciências. O objetivo da Aritmética é familiarizar os estudantes com os números em um contexto abstrato. A Aritmética ensina os números e suas relações entre si, a ideia de que eles podem representar coisas materiais, bem como o fato de serem representados materialmente por símbolos (por exemplo, 1, 2, 3, etc.) e palavras (por exemplo, um, dois, três, ou one, two, three, etc.), embora, na verdade, sejam ideias imateriais embutidas no universo simplesmente por existirem. A Geometria parte dos números como conceito abstrato e os aplica no espaço tridimensional. Dessa forma, são considerados temas como medidas, ângulos e suas relações, além dos teoremas que permitem tirar conclusões com base em fatos previamente estabelecidos.3

Para os pensadores modernos, a Música pode parecer deslocada nesta lista. No entanto, a música é a medição dos números no tempo. Os números não precisam ser encarados como elementos estáticos, mas sim como entidades que podem se mover no tempo, acelerando e desacelerando. Finalmente, a Astronomia é o estudo do número no espaço e no tempo conjuntamente. O cálculo das distâncias entre os corpos celestes e das órbitas destes entre si nos mostra como eles simultaneamente percorrem distâncias e o tempo.

As sete artes liberais, em conjunto, demonstram uma espécie de unidade na diversidade do conhecimento humano. A interconexão de cada uma dessas disciplinas, que se revelam não ser tão distintas assim, aponta para a unidade da mente do Criador. Cada uma dessas artes explora a criação de Deus. O Trivium investiga o próprio homem, interiormente, enquanto portador da imagem, que pensa e fala – e o faz de forma genuína – pois são criados à semelhança do Deus que falou o universo à existência e manifestou sua Palavra na pessoa de Jesus Cristo. O mundo exterior ao homem é abordado pelo Quadrivium. Deus criou o universo para ser pesquisável, conhecível, matematicamente quantificável e lógico, pois ele reflete a si mesmo, a fonte de toda verdade. O mestre das artes liberais já pratica filosofia e teologia muito antes de ter consciência disso e antes mesmo dessas disciplinas serem formalmente adotadas.

Não apenas as artes liberais eram historicamente consideradas preparatórias para o estudo da filosofia, e da teologia, como também eram vistas como disciplinas que libertavam (tornavam livres) aqueles que as estudavam. Quem aprendia as artes liberais adquiriam, de fato, as próprias ferramentas do aprendizado. Uma pessoa com educação liberal podia, por conta própria, ensinar-se qualquer outra coisa que desejasse saber e, por isso, assumir qualquer número de profissões, tanto na vida privada quanto na pública.

As artes liberais devem ser contrastadas com as artes serviles. Artes serviles são atividades que podemos chamar de ofícios (por exemplo, alvenaria, construção de casas, agricultura etc.). É nesse ponto que surgem o perigo e o mal-entendido (a mãe de toda ofensa). Não é que aprender um ofício seja, de alguma forma, inferior, humilhante, indigno ou sem importância por si só. Como Lutero comenta acerca da vocação, todo trabalho feito para a glória de Deus é bom. Trabalhadores especializados são incrivelmente importantes para uma sociedade forte e saudável. Precisamos daqueles que se especializam em inúmeras áreas diferentes. Ademais, podemos razoavelmente esperar que nosso cirurgião dedique a maior parte de seu tempo a aperfeiçoar sua técnica na remoção do câncer, em vez de se dedicar ao seu interesse por colecionar selos. Necessitamos de especialistas que sejam médicos, eletricistas, barbeiros, pavimentadores, profissionais de TI, etc.

Não, não há nada de ruim ou errado em ser um trabalhador especializado ou um especialista de qualquer tipo. O único problema com um treinamento altamente especializado ocorre quando ele é o único tipo de educação que uma pessoa recebe. Alguém que sabe apenas uma coisa (por exemplo, como assentar tijolos de maneira correta) acaba se tornando escravo do seu ofício. Ao longo da história (da antiga à moderna), os escravos foram ensinados a ser operários altamente capacitados (ainda hoje podemos admirar um artesanato incrível que perdura por milhares de anos) em determinadas áreas, o que foi bastante produtivo e útil para a sociedade. Contudo, isso não foi, obviamente, algo particularmente benéfico para a dignidade daqueles que mereciam um tratamento melhor. Existem inúmeros relatos ao longo da história (da antiga à moderna) de escravos que receberam uma educação em artes liberais e se tornaram livres. Em alguns casos, tornaram-se livres no pleno sentido legal do termo; em outros, ao menos se libertaram mentalmente e elevaram sua dignidade, apesar de continuarem com a escravidão do corpo. Frederick Douglass é um exemplo histórico relativamente recente, enquanto Esopo seria um exemplo mais clássico, havendo muitos outros que poderiam ser citados. A educação em artes liberais torna o indivíduo capaz de ler e escrever bem, pensar com clareza e expressar suas ideias e argumentos de maneira persuasiva. Um povo educado assim é difícil de ser escravizado, e escravos que adquirem essa educação são difíceis de manter em cativeiro.

Claro que não há absolutamente nada que impeça uma pessoa com formação liberal de aprender ofícios técnicos úteis (nem há algo baixo ou servil nisso). Entretanto, o inverso não funciona da mesma forma. Com isso em mente, surge a pergunta: “Que tipo de educação deve ser oferecida àqueles que carregam a imagem de Deus?”.

A resposta deveria ser óbvia. Devemos proporcionar aos nossos filhos (a todos os nossos filhos) uma educação em artes liberais. A mania contemporânea pela formação técnica nos ensinos fundamental e médio é, na verdade, uma receita para a escravidão. Muitos pais, compreensivelmente, desejam que seus filhos consigam um emprego bem remunerado, e o mundo moderno tende a valorizar profissões centradas em S.T.E.M. (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática); por isso, há um movimento crescente para que o treinamento especializado seja a principal oferta nas escolas do ensino fundamental e médio.

Mas considere as armadilhas dessa abordagem. Primeiro, o que acontece se o ofício específico que a pessoa aprendeu se tornar obsoleto ou deixar de ter demanda? Se isso é tudo o que a pessoa sabe fazer, ela enfrentará uma situação terrível. Segundo, e se uma lesão impedir o desempenho de uma função essencial do ofício aprendido? Novamente, uma situação grave. Contudo, esses não são os efeitos mais desastrosos de se optar por um treinamento altamente técnico em detrimento de uma educação liberal.

Os efeitos mais trágicos do treinamento altamente especializado, à margem de uma educação liberal, são os impactos que ele exerce sobre a alma dos alunos e de nossa nação como um todo. De que vale a vida, mesmo uma vida com muito dinheiro, se o nosso único propósito é trabalhar, produzir um bem ou serviço, e depois voltar para casa, assistir televisão e recomeçar? De fato, de que adianta uma pessoa que descobre que não é mais capaz de produzir ou de ser rentável, se a produção — e não as pessoas — é o que, em última análise, se valoriza no mundo? Uma educação em artes liberais nutre a alma com “coisas supérfluas”, como arte, música, literatura, história, filosofia e teologia. Essas, por sua vez, inspiram a imaginação e despertam o desejo de conhecer, compreender e agradecer a Deus pelas coisas verdadeiras, boas e belas deste mundo (além de lutar por sua preservação).

Uma formação estreita em uma única habilidade produz pessoas unidimensionais. Pessoas que não têm nada em comum com ninguém, exceto com aqueles que fazem exatamente o que elas fazem. Esse tipo de especialização gera um povo desconectado, que não consegue se comunicar por não compartilhar um vocabulário, histórias nem pressupostos em comum. Isso resulta em um povo que se isola em suas casas e nunca conversa com os vizinhos (e talvez até os torna receosos uns dos outros). Um povo amplamente instruído é um povo unido que compartilha, em seu núcleo, elementos que possibilitam o intercâmbio significativo de ideias. Uma pessoa pode ser professor, outra gerente de supermercado, outra operária da construção, outra pastor, contador ou até uma mãe que educa em casa, mas todas conseguiriam se comunicar de forma significativa entre si. Elas saberiam algo sobre o que as outras também sabem, extraindo de um mesmo reservatório, mesmo que direcionem seus esforços por vertentes diferentes.

Devemos resistir corajosamente à tendência da educação moderna, que substituiu o ensino liberal por uma formação técnica cada vez mais restrita. Certamente, devemos combater as premissas subjacentes dessa educação, que sugerem que as pessoas só devem ser valorizadas com base em sua capacidade de produzir bens úteis (valor de sobrevivência para a espécie), em vez de reconhecê-las como intrinsecamente valiosas. Devemos buscar oferecer uma educação liberal a todas as crianças. Essas crianças poderão crescer e seguir qualquer tipo de trabalho ou ofício que desejarem. Não há vergonha em trabalhar com as mãos; é um trabalho honesto e digno. Há, porém, muita vergonha em privar as pessoas da escolha sobre o que fazer com suas vidas, pois elas são encaixotadas em um ofício, sem possibilidade de agir de outra forma.

Pessoas formadas de maneira tão restrita são facilmente controláveis por aquelas que possuem uma educação mais ampla. Esse ponto não pode passar despercebido.

Muitas das mesmas pessoas que defendem a transformação da educação pública em treinamento profissional também se beneficiam de uma formação mais liberal. Não devemos permitir que nossa cidadania trilhe o caminho sedutor que conduz à escravidão. Toda criança deve ter a oportunidade de dominar as artes da linguagem e da matemática, para que possa seguir o rumo que lhe agradar. Precisamos daqueles que irão prosseguir em uma educação liberal mais avançada – nos níveis de bacharelado, mestrado e doutorado –, tornando-se políticos, historiadores, advogados, filósofos, pastores etc. Precisamos também daqueles que receberão treinamento técnico especializado e atuarão na construção, em TI, na produção de alimentos, nas artes cênicas, em diversos campos da medicina etc. Acima de tudo, necessitamos de um povo livre. Precisamos de portadores da imagem que possam pensar por si mesmos e distinguir a verdade da falsidade. Precisamos de pessoas que consigam apreciar o que é verdadeiro, bom e belo, que vivam intensamente, desfrutem das amizades, amem seus vizinhos, cultivem hobbies e dialoguem com seus semelhantes com amor, compreensão e empatia.

Esse povo será próspero. Esse povo não se sujeitará facilmente a ninguém.


1 Para aqueles que odeiam Matemática, isso pode ser lido tão bem quanto a inscrição de Dante, acima dos portões do inferno: “Abandonai toda esperança, vós que entrais aqui.”

2 Em cada caso, seria justo dizer que Gramática, Lógica e Retórica são mais do que essas simples definições, mas certamente não são menos. Essas definições também visam auxiliar o leitor a compreender como elas se relacionam e se diferenciam umas das outras.

3 Por isso, geometria e lógica andam de mãos dadas. Os teoremas geométricos são basicamente silogismos lógicos expressos em termos matemáticos. A lógica ocupa uma posição única entre a linguagem e a matemática e, dependendo da área de estudo, pode parecer mais com o estudo da gramática e da linguagem ou com o estudo de equações matemáticas.

Original: What is a Liberal Arts Education? Cedido com autorização do autor.